quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O homem comum e aqueles que são onipresentes

Kundera fala sobre a onipresença do narrador no romance moderno. Antes se via pouco, o narrador se travestia de personagem ou era o personagem que tomava o microfone de letras da boca ou do lápis e, de uns tempos pra cá, dos lap tops de funcionários públicos entediados antes ou depois da próxima leva de segundas vias ou porque a moça do café só vai passar daqui a pouco. E tudo bem que podia ser a própria moça do café, lá, contando, falando da senhora do primeiro gabinete que não tira o rosto dos papéis amarelados de cima da mesa, pega o copinho de plástico de café, olhos ainda não tirados, bebe o café do copinho, olhos agora descem um pouco e vão para uma agenda, essa já mais esverdeada, agora o copinho vai para a lixeira, os dedos livres começam a folhear a tal agenda, outubro, novembro, o copinho caiu fora da lixeira, e passo para o próximo gabinete já mal me lembrando do último.

A moça do café narradora, e que também é narrada, tem olhos tão humanos quanto os seus próprios olhos humanos, e descreve aquilo que vê de acordo especificamente, e nada mais ou além do quê aquilo que ela vê, sente, pensa, ouve, fala, narra.

Agora a moça do café começa a ver outras coisas. Mas também não narra. Quem narra agora é o funcionário público entediado e que sequer está lá para saber. Ele não conhece a moça do café, só de vista talvez, trocam bons dias e tardes razoáveis e há alguns meses atrás quase tiveram um sério desentendimento sobre a relatividade da apreciação do açúcar dentro do café na humanidade de acordo com valores psicológicos abstratos e inalcançáveis, e que durou por volta de quarenta e sete segundos. Tampouco conhece a senhora do primeiro gabinete, que de qualquer forma, parece nunca olhar para ninguém. Mas o funcionário público que é escritor nas horas ociosas resolveu agora que pode falar dela ainda assim. Ele está lá ao seu lado, fungando o nariz sobre as folhas amareladas e a agenda de capa dura suja e esverdeada. Chega até a comentar com você, leitor, que se tratavam de escritos antigos de uma juventude mal guardada e que ela recuperava como quem recupera uma linha de pensamento, perdida no barbante semântico da vida arrebentado já há tantos anos e cujo nó custara a reatar. Enfim, resolve te omitir, leitor, ao menos até o fim do capítulo quatorze, a ansiedade que servia de pano de fundo psicológico para a moça do gabinete, que aliás era estrábica e via naquele passado amarelado uma segurança nostálgica que o próprio narrador explica - com convicção inquestionável e mais segura do que qualquer cientificidade academicista ou medidor de decibéis eletrônico em concha acústica - e nem menciona o inquietamento da moça do café que ele próprio considera irrelevante para a continuidade fluida de um futuro best-seller.

O interessante e que chama a atenção no tal funcionário público, e que podia ser qualquer narrador aleatório de romances e que veja além do que achamos possíveis para os olhos de seus possíveis personagens, é justamente esse ponto em que ele, insatisfeito com o que o personagem vê, ou, enfim, com a falta de curiosidadade cosmológica do próprio personagem, resolve puxar a linha da fronteira de sua própria capacidade de percepção, faz aumentar seus olhos e ouvidos, reduzir o barulho dos sapatos, aumentar os calos das pontas dos dedos dos pés. O conhecimento ganha novas proporções, mas não nega a poesia e a importância literária da ignorância e, afinal, em geral quem olha em microscópios deixa os telescópios de lado, e vice-versa, que quando se escolhe olhar para um lado, raramente o pescoço tem tempo de dar um giro de cinquenta e cinco graus para notar o princípio de incêndio na cortina da janela do vizinho do outro lado da rua, e não foi à toa a demora dos bombeiros. E é essa escolha que me intriga, o de dizer além do que se poderia, mas ao menos tempo recusar-se a falar daquilo que se poderia, ou que de repente também não, mas a essa altura, o que é que custa?

Há certamente um tanto de voyeurismo em tudo em que a realidade que é puxada para perto demais.

Mas o quê há naquilo que se opta consciemente por não falar? Ou por não se conhecer. Que tipo de conhecimento, afinal, a curiosidade da onisciência é demasiado pouca para alcançar?

Também há certamente algo em comum entre aquilo que a curiosidade do narrador onisciente não é suficientemente grande para conhecer, e o que o homem comum, repleto de suas angústias, medos, fantasias e prazeres, se esforça por não saber, e se sabe, faz o possível para esquecer.

E afinal de contas, parece até que um deles costuma ler o que o outro escreve. 


Nenhum comentário: