quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O nada e as coisas que voam

Até que ponto é possível sentir os sentidos? Foi a pergunta que me puseram hoje a tarde, puseram, impessoal, para não dizer que foram brisas existenciais ou passarinhos sofistas que vieram desterrar minhas idéias de seu nicho de preguiças por mera intriga, e que de repente agora me vejo tocando meus dedos com meus dedos na estranha esperança de sentir o que meus dedos sentem em relação aos meus dedos, como reflexo que tenta tocar a mim mesmo no espelho.

Aí vem aquelas discussões todas de alteridade, ser o eu do outro, o outro do eu, objetivação do subjetivo e o eu dessubjetivado, essas coisas todas que servem para quem tem egos pequenos demais, eus ilhados, colecionadores de personalidades como borboletas secas e mortas pregadas em quadros de cortiça e com as asas dependuradas, livres, para voarem quando eu empurro ou esbarro sem querer andando pelo estreito corredor da casa. O Munsterberg fala de uma pré-lingüística que acreditava em palavras voadoras que carregavam grandes significados nas costas, e que por isso as dores vertebrais e as palavras tortas.

Vem aí um vôo de significados. Esse vai ser grande, parece que hoje eles vêm em revoada por causa dos ventos alísios do sudeste. Significados por tudo que é canto, e uns pesados demais quebraram a janela do banheiro do vizinho, tomava banho o coitado. Depois voaram de volta, saíram pela mesma janela e acabaram dando no mar, sem maiores prejuízos.

Depois vieram outros, e o próprio Munsterberg, tirando o estorvo das palavras, que agora voam livremente e se encontram com seus significados dentro de nós mesmos, quando não deles, e ouvi dizer que até daqueles outros também. Foi o que ouvi das más línguas. E aí que agora é essa bagunça, substantivos e verbos voando para todos os lados com a leveza de quem não sabe nem se ler, um bando de verbetes analfabetos de si próprios, e paredes chapiscadas e pêlos de cachorro e o cheiro estranho da gaveta do meio do escritório e o meu reflexo ou o seu na frente de mim no espelho que agora deram para não se sentir, cheirar, olhar, que ninguém me percebe mas eu percebo tudo, tudo está dentro de mim e nada está fora, mas eu preciso do nada para sentir o tudo que está dentro. Alguma coisa próxima dos banheiros que dão descarga, lavam as mãos e secam sem que você precise estar lá para cagar.

Eu preciso do nada. Um niilismo que eu não esperava a essa altura, em plena era dos sacos de plástico descartáveis dos mercados e das barras de chocolate feitas sem açúcar, glúten, gordura, lactose ou quaisquer outros ingredientes. Mas talvez por isso mesmo, que seja para acompanhar, que precisar do nada é ecologicamente correto, bom para os dentes, evita que a conversa desande em discussões partidárias, não engorda e cabe em qualquer DVD.

E aí vem o tal passarinho sofista com essa de sentir o que os outros sentem, tato sobre tato, visão sobre visão, como cheirar o nariz alheio, e eu bem que poderia soltar um só sei que nada sei, que por sinal, já é saber bastante dessa humanidade em que o nada já nem é mais tão pouco quanto era em tempos socráticos, se valorizou, foi privatizado e agora se compra em dólar.

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