A moça do café narradora, e que também é narrada, tem olhos tão humanos quanto os seus próprios olhos humanos, e descreve aquilo que vê de acordo especificamente, e nada mais ou além do quê aquilo que ela vê, sente, pensa, ouve, fala, narra.
Agora a moça do café começa a ver outras coisas. Mas também não narra. Quem narra agora é o funcionário público entediado e que sequer está lá para saber. Ele não conhece a moça do café, só de vista talvez, trocam bons dias e tardes razoáveis e há alguns meses atrás quase tiveram um sério desentendimento sobre a relatividade da apreciação do açúcar dentro do café na humanidade de acordo com valores psicológicos abstratos e inalcançáveis, e que durou por volta de quarenta e sete segundos. Tampouco conhece a senhora do primeiro gabinete, que de qualquer forma, parece nunca olhar para ninguém. Mas o funcionário público que é escritor nas horas ociosas resolveu agora que pode falar dela ainda assim. Ele está lá ao seu lado, fungando o nariz sobre as folhas amareladas e a agenda de capa dura suja e esverdeada. Chega até a comentar com você, leitor, que se tratavam de escritos antigos de uma juventude mal guardada e que ela recuperava como quem recupera uma linha de pensamento, perdida no barbante semântico da vida arrebentado já há tantos anos e cujo nó custara a reatar. Enfim, resolve te omitir, leitor, ao menos até o fim do capítulo quatorze, a ansiedade que servia de pano de fundo psicológico para a moça do gabinete, que aliás era estrábica e via naquele passado amarelado uma segurança nostálgica que o próprio narrador explica - com convicção inquestionável e mais segura do que qualquer cientificidade academicista ou medidor de decibéis eletrônico em concha acústica - e nem menciona o inquietamento da moça do café que ele próprio considera irrelevante para a continuidade fluida de um futuro best-seller.
O interessante e que chama a atenção no tal funcionário público, e que podia ser qualquer narrador aleatório de romances e que veja além do que achamos possíveis para os olhos de seus possíveis personagens, é justamente esse ponto em que ele, insatisfeito com o que o personagem vê, ou, enfim, com a falta de curiosidadade cosmológica do próprio personagem, resolve puxar a linha da fronteira de sua própria capacidade de percepção, faz aumentar seus olhos e ouvidos, reduzir o barulho dos sapatos, aumentar os calos das pontas dos dedos dos pés. O conhecimento ganha novas proporções, mas não nega a poesia e a importância literária da ignorância e, afinal, em geral quem olha em microscópios deixa os telescópios de lado, e vice-versa, que quando se escolhe olhar para um lado, raramente o pescoço tem tempo de dar um giro de cinquenta e cinco graus para notar o princípio de incêndio na cortina da janela do vizinho do outro lado da rua, e não foi à toa a demora dos bombeiros. E é essa escolha que me intriga, o de dizer além do que se poderia, mas ao menos tempo recusar-se a falar daquilo que se poderia, ou que de repente também não, mas a essa altura, o que é que custa?
Há certamente um tanto de voyeurismo em tudo em que a realidade que é puxada para perto demais.
Mas o quê há naquilo que se opta consciemente por não falar? Ou por não se conhecer. Que tipo de conhecimento, afinal, a curiosidade da onisciência é demasiado pouca para alcançar?
Também há certamente algo em comum entre aquilo que a curiosidade do narrador onisciente não é suficientemente grande para conhecer, e o que o homem comum, repleto de suas angústias, medos, fantasias e prazeres, se esforça por não saber, e se sabe, faz o possível para esquecer.
E afinal de contas, parece até que um deles costuma ler o que o outro escreve.